A Segunda Capital

Em 13 de setembro de 2021 – Redação – Por Sylvain Levy – Médico Sanitarista e Psicanalista

Primeiro foi o imortal cronista Merval Pereira, agora é lançado uma coletânea de ensaios no livro “Rio 2 *Distrito Federal: Diagnóstico da Crise Estadual e Defesa da Federalização”, que propõem que o Rio de Janeiro seja elevado,
novamente, à categoria de Capital Federal, sem ocupar o lugar de Brasília, mas que o Brasil passe a ter duas capitais.

Foto Montagem Blog do Candango

Poder-se-ia classificar esta ideia como saudosista e destiná-la a sexta seção, ou sexta de lixo, mas não é tão simples nem simplória. Ao contrário de um mea culpa pela degradação e desidratação do Rio e de suas instituições, criam um
bode expiatório (figura no dizer do inesquecível Stanislaw Ponte Preta, resultante do cruzamento de cabra com periscópio) e culpam Brasília pelos males cariocas.

Atitude de criança ou de psicopatas que não conseguem enxergar seus erros e assumir suas responsabilidades. Após o retorno da corte para Portugal, a degradação da cidade se acentua com a liberação dos escravos, com a sua exclusão dos processos produtivos e da educação, com seu confinamento nos bairros periféricos que foram engolidos pelo crescimento da cidade , tornando-se lócus centralis, e nos morros, originando a favelização, além do crescimento desordenado e incontrolável.

Um fato a ser lembrado é a observação do antropólogo frances Lévy-Strauss, que na década de 30 (quando era professor na USP) visitou o Rio de Janeiro e marcou a incoerência de que os lugares mais bonitos – os morros – eram ocupados pelos mais pobres, invertendo uma tendência mundial: a dos ricos em cima e os outros em baixo.

Em concomitância com esse êxodo geográfico outras exclusões foram se formando como o analfabetismo – devido a exclusão educativa; a precariedade das condições de trabalho – devido à falta de oportunidades e falta de habilitação; a perda gradativa e constante do poder aquisitivo gerando a conformação de uma exclusão social que foi empurrando os pobres (negros e brancos) para atividades possíveis, lícitas e ilícitas. Na primeira categoria encontramos as artes, como música e entretenimento, escolas de samba a carnaval, e os esportes, principalmente o futebol, além das atividades de prestação de serviços neo-escravagistas, como domésticas, porteiros, entregadores, entre outros, como que a guardar uma fidelidade a seu passado colonial e de nobreza.

Porém, as ocupações lícitas não conseguiram abarcar toda a gama de ambições desses excluídos. Nem ambições monetárias, nem de poder, nem de manutenção da família e ascensão social. A busca pelas atividades ilícitas mais aceitas e muitas vezes estimuladas, como a prostituição no Cais do Porto e na zona do Mangue, necessitavam de proteção física, política e policial. Com os proxenetas nasciam as milícias sociais. O jogo do bicho (contravenção e não crime) empregava milhares de agentes e apontadores, que também necessitavam de proteção, originando autentica milícia trabalhista. De bicheiro para bookmaker foi um passo, mas daí para traficante de drogas foi um salto. As atividades ilícitas escalaram vários degraus e esse crescimento não foi monitorado pelo estado, embora absorvido através da corrupção, tampouco veio acompanhado de políticas públicas que pudessem enfrentá-lo e desestimulá-lo.

O próximo nível de degradação moral, social e policial foi a criação de morticínio institucional, inaugurado pelo assassinato de mendigos, jogados no Rio Guandu, em 1960, no início do Governo de Carlos Lacerda. Desta cepa nasceram os Esquadrões da Morte, sendo o mais famoso a Escuderia Le Coq (em homenagem ao detetive da polícia civil, tristemente famoso), operados por policiais civis e militares a serviço de bicheiros e criminosos.

Com o advento da ditadura, alguns policiais e militares enxergaram uma Janela de oportunidade e bandearam-se para o lado do crime ou da contravenção. O mais notório foi o Capitão Guimarães, que chegou a presidir a Liga das Escolas de Samba do Rio de Janeiro.

Já nessa época, o medo das classes média e alta, de que o morro descesse para o asfalto, estava sendo substituído pela convivência pacífica dos viciados do asfalto em busca de pontos de drogas nos morros. A oportunidade de melhores dias para essa população marginalizada ficava consubstanciada tanto na ausência do estado em oferecer serviços, como na promessa de dinheiro farto a quem participasse do tráfico. Tudo isso alavancado por constante corrupção de policiais e políticos, cada vez mais indissociáveis.

As favelas viraram comunidades, cresceram e demandavam serviços que os governos não promoviam. O recurso foi aceitar, de bom grado ou na marra, o que era oferecido pelas milícias: rede de TV a cabo, distribuição de gás, segurança, loteamentos e construções clandestinas, entre outros.

Acreditar que tudo isso será rompido com uma canetada, recriando uma “nova velha capital” equivale a acreditar que as milícias só querem o bem da população.

Alegar que uma capital tem que representar cultural e simbolicamente um país é acreditar que Washington pode rivalizar com New York em termos culturais ou Bonn com Berlim, em termos políticos ou Berna com Genebra, em
termos financeiros.

Afirmar que “nem Brasília se transformou em uma capital representativa do país, nem o Rio deixou de ser capital” é uma miopia histórica e uma inverdade escatológica. Justamente por ser nova e construída em três anos, Brasília representa um país novo e pujante. Do centro do país é aberta a todos os brasileiros que a podem abraçar e ver com esperança um país melhor e diferente.

Essa proposta de criar duas capitais é um avanço em direção ao passado, a um passado elitista e patrimonialista, em que o Estado é a mãe e o pai que nutrem a todos e dão suporte a tudo e assim impede aos demais entes federativos de crescer por suas próprias pernas. Essa proposta é, antes de tudo, uma declaração de incompetência para os cariocas que, como eu, preferem gerir suas próprias mazelas e pensar que governos competentes, honestos e descentes podem fazer surgir um estado digno de seu futuro.