A ditadura do judiciário

Em 17 de agosto de 2021 – Por Sylvain Levy – Médico Sanitarista e Psicanalista

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A todo o momento se escuta e se lê sobre a ditadura do judiciário, porem esse autoritarismo começa nas leis votadas no parlamento e aprovadas pelos executivos. O Judiciário as cumpre, com maior ou menor humanidade dos promotores que acusam, dos advogados que defendem e dos juízes que sentenciam.

Não tenho receio em dizer que as leis em sua imensa maioria são feitas pelas elites dirigentes e para elas usufruírem das benesses e vantagens. Isso fica evidente em dois fatos: a existência de foro especial para graduados (justamente os mais esclarecidos e, portanto, os menos merecedores de indulgencias) e a população carcerária, constituída também na quase totalidade, por pretos, pobres e analfabetos ou incultos.

Estão presos porque não cursaram universidades, não possuem amigos influentes, ricos ou poderosos e não conseguiram advogados que trabalhassem efetivamente por suas causas, ou por despreparo, ou por desinteresse ou pouco atrativo financeiro. Tudo isso independentemente de terem ou não cometido algum crime ou da gravidade dele. Um jornalista de São Paulo, assassino confesso da namorada demorou 15 anos para ser sentenciado; o médico estuprador de 278 mulheres recebeu habeas corpus do Supremo; o caso Doca Street, só para citar casos conhecidos.

Essa ditadura das elites, mais do que ditadura do judiciário, pode ser assim desenhada:

a) As melhores escolas de graduação sempre foram as públicas, porem, antes da abertura por cotas, o privilégio da presença nessas faculdades era, em sua maioria, de um grupo mais abastado financeiramente, que conseguia pagar escolas privadas de ensino médio e caros cursinhos preparatórios para seus rebentos. Até a pouco tempo só existiam cursos noturnos nas universidades particulares, obrigando àqueles estudantes que necessitavam de trabalhar, mesmo que passassem nos vestibulares das faculdades públicas, a se matricularem em universidades privadas. Ou seja, a elite busca mecanismos para se manter como elite.

b) Nesses bancos escolares se forjam amizades e conhecimentos com funções afetivas, profissionais e utilitárias. E são essas amizades e conhecimentos que podem cimentar caminhos para oportunidades tanto de trabalho como de outras naturezas, como as eleitorais, através de financiamentos de campanhas; outros financiamentos podem ocorrer por outros meandros, mas todos com a mesma finalidade.

c) Eleitos, esses parlamentares ou edis serão porta vozes de seus financiadores ou amigos e elaborarão as leis de interesses dessas pessoas, grupos ou elites.

d) Os juízes, que habitualmente percorrem os mesmos caminhos ou pretendem entrar para o grupo elitista, julgam conforme as leis fabricadas pela e para as elites, o que provoca um sem número de injustiças, como as condenações por motivo fútil e de crimes com ínfimo valor monetário. Tudo é feito para tirar das ruas o que pode atrapalhar as elites. Como disse Millor Fernandes “a justiça é cega. Aí começa a injustiça”.

Outro fator importante é o emocional. O juiz, algumas vezes sem parecer, continua sendo um ser humano com todas as qualidades e defeitos atinentes. Colocado no topo da hierarquia funcional, tendo como norte um Supremo (Tribunal Federal) é humano que se encha de prepotência e arrogância, não aceite contestações (exceto as jurídicas) e exija ser chamado de Excelência. Quem já teve o dissabor de, durante audiência, se referir ao magistrado simplesmente como senhor, sabe do que estou falando.

A medida que ascende na carreira e mais participa da elite mais sobe na cabeça o seu poder. Os exemplos provenientes de tribunais estaduais ou de segunda instancia são notórios.

Para não ficar apenas no ambiente jurídico, pode-se citar o caso do setor saúde. Antes do advento do SUS, com seus preceitos de universalidade, integralidade e equidade a todas as pessoas, a filosofia de cuidados à saúde no Brasil era assistencial em sua essência e com a finalidade de recuperar a mão de obra para o trabalho. Programas de atenção para crianças, mulheres e idosos eram benesses, não direitos. Quem não produzia riquezas, dentro das regras capitalistas, não tinha direito aos cuidados. Quem tinha direito a assistência médica eram os assalariados pertencentes a sindicatos que constituíam os Institutos de Aposentadoria e Pensões – IAPI, IAPC, IPASE, etc. Os demais eram considerados indigentes ou beneficiados por atendimento em Santas Casas e similares. As elites criaram um sistema que atendia a elas e aos seus interesses.

Por isso a criação do SUS mobilizou tanta luta na Constituinte de 88 e continua a ser necessária uma vigilância permanente contra os detratores do SUS.

Mas um ponto ainda carece de discussão: qual o limite entre liberdade de opinião e atentado às liberdades democráticas? Vou iniciar o pensar sobre esse tema usando outro exemplo da área da saúde. O Conselho Federal de Medicina exarou resolução que garantia a liberdade de prescrição do médico no atendimento a casos de Covid. Pode
parecer que era uma resolução genérica, mas não era, pois o próprio Código de Ética Médica já reza assim. Não era, pois, um postulado genérico mas dirigido aos facultativos que desejassem prescrever cloroquina. Naquele momento era uma droga ainda sem comprovação científica de cura ou prevenção, o que ficou posteriormente constatado em
dezenas de estudos. Então o CFM re-autorizou a liberdade de prescrição (já vigente no CEM) ou o teste terapêutico in vivo, burlando a legislação sobre pesquisa in anima nobili? E posteriormente com o conhecimento da ineficácia da droga já consolidado, não revogou nem modificou a Resolução.

Voltando a questão jurídica, Roberto Jeferson, assim como outros personagens, cometeu apenas crime de opinião (alias se for assim nem existe crime) com as publicações na Internet contra o STF e seus Ministros e com as ameaças de morte das pessoas e da democracia – afinal sem instituições democráticas não pode haver democracia? Se não fossem detidos na sua campanha anti-instutucional deveria se aguardar que essas mensagens se transformassem em ondas vingativas e mais dia menos dia uma horda ensandecida invadisse o STF, como aconteceu nos episódios do Congresso Americano, esse ano e, mais longinquamente, no incêndio do Reichstag, em 1933?

Outra questão que se coloca é até onde vai a divulgação de opinião – a publicação de ideias – e uma ação subsequente, como a destinar recursos financeiros e funcionais para execução dessas ideias.

Talvez a pergunta mais interessante seja: até que ponto devemos ser tolerantes com a intolerância?