É possível a prisão e a condenação de um CAC (Colecionador, Atirador e Caçador) por porte ilegal de arma de fogo

Em 13 de janeiro de 2021 – 19h13 – Redação – Por James de Moraes Mafra, Advogado 

Esse é um tema que vem permeando as conversas em diversos grupos, tanto de atiradores esportivos propriamente ditos, como de policiais que buscam saber quais procedimentos adotar quando de uma abordagem ao cidadão que possua Certificado de Registro do Exército, vez que muitas são as informações, porém poucas são as instruções de como aplica-las.

Cumpre dizer, que nesse texto não abordaremos quem é o CAC, ou quais os procedimentos para tirar o CR junto ao Exército Brasileiro, quais os tipos de porte de armas, visto que o foco principal é discutir se é possível ou não a prisão e a condenação de um atirador esportivo pelo crime de porte ilegal de arma de fogo previsto na lei 10.826/2003, ou como todos conhecem, Estatuto do Desarmamento.

O Estatuto do Desarmamento trouxe uma série de restrições ao porte de arma de fogo no território Brasileiro, autorizando apenas determinadas carreiras elencadas no artigo 6º a portarem suas armas.

Ocorre que a mesma lei traz a previsão legal de se permitir o porte de arma aos integrantes de entidades de desporto cujas atividades demandem o uso de armas de fogo no mesmo artigo 6º, em seu inciso IX. Porém nem tudo são flores, e o porte de arma de fogo para essas pessoas, conforme previsto em lei, dependeria de um regulamento, regulamento esse privativo do Chefe do Poder Executivo Nacional, ou seja, do Presidente da República.

Novamente, não nos aprofundaremos no artigo 6º da Lei 10.826, pois o que importa nesse artigo é a questão do porte de arma do Atirador Desportivo, e o debate sobre porte de outras categorias acarretaria em um texto demasiadamente cansativo.

Como o tema armas de fogo ainda é tratado no Brasil pela maioria das pessoas como tabu, como algo que realmente deva ser restrito a determinadas pessoas, visto o forte apelo desarmamentista das mídias sociais e de políticos, durante mais de 16 (dezesseis) anos não fora editado Decreto Presidencial algum que realmente regulamenta-se, esclarece-se, trouxe-se os significados necessários, para regulamentar o porte de arma de fogo do integrante de Entidade de Tiro Desportivo, o CAC.

Após muita espera o Presidente Jair Bolsonaro, eleito no pleito de 2018, onde bateu fortemente na tecla pela liberação de armas de fogo quando em sua campanha, editou o Decreto nº 9.847 de Junho do ano de 2019, decreto esse que veio a regulamentar a lei 10.826/2003.

Mas antes da edição do Decreto 9.847, outros três foram editados no mesmo dia, o que de certa forma trouxe mais insegurança aos praticantes do tiro.

Cumpre salientar, que na data de 08/05/2019 entrou em vigor o Decreto 9.785, decreto esse que previa o porte de arma de fogo para o CAC, porém também previa para diversas outras categorias profissionais, o que acabou acarretando em diversas ações junto ao Supremo Tribunal Federal, pois estaria o Presidente usurpando função atinente ao Congresso Nacional.

Sendo assim, o Decreto supracitado foi revogado pelo Decreto 9.844, decreto esse também revogado, porém agora pelo Decreto 9.847, o qual por enquanto encontra-se vigente.

Ocorre que mesmo após a edição de 7 (sete) Decretos Presidenciais sobre porte e posse de arma de fogo, o atirador esportivo em tese ainda se submeteria aos mesmos termos do artigo 135-A, da Portaria 51 do Comando Logístico do Exército, portaria revogada pela Portaria 150 de 2019 do COLOG.

Na Portaria 150, verifica-se que o texto é idêntico ao previsto no Decreto 9.846/2019 que trata especificamente dos CACs:

Decreto 9.846

Art. 5º

(…)

  • 3º  Os colecionadores, os atiradores e os caçadores poderão portar uma arma de fogo curta municiada, alimentada e carregada, pertencente a seu acervo cadastrado no Sinarm ou no Sigma, conforme o caso, sempre que estiverem em deslocamento para treinamento ou participação em competições, por meio da apresentação do Certificado de Registro de Colecionador, Atirador e Caçador, do Certificado de Registro de Arma de Fogo e da Guia de Tráfego válidos.

Portaria 150

Art. 61. Os colecionadores, os atiradores e os caçadores poderão portar uma arma de fogo curta municiada, alimentada e carregada, pertencente a seu acervo cadastrado no SINARM ou no SIGMA, conforme o caso, sempre que estiverem em deslocamento para treinamento ou participação em competições; para abate autorizado de fauna; ou para exposição do acervo de coleção, por meio da apresentação do Certificado de Registro de colecionador, atirador desportivo ou caçador, do CRAF e da Guia de Tráfego, válidos, nos termos do §3º do art. 5º do Decreto nº 9.846/2019.

O texto anterior da portaria 51 do COLOG previa o seguinte:

Art. 135-A. Fica autorizado o transporte de uma arma de porte, do acervo de tiro desportivo, municiada, nos deslocamentos do local de guarda do acervo para os locais de competição e/ou treinamento.

Nota-se que nesses casos, a previsão do porte é praticamente idêntica, verificando-se como única diferença a possibilidade do transporte de uma arma de fogo registrada no SINARM, porém ainda será necessário nesse caso a Guia de Trâfego, e nesse caso quem a irá fornecer? O Exército ou a Policia Federal? Esse será um tema a ser analisado futuramente.

Por hora o debate continuará em cima do porte do atirador desportivo.

Há que se respeitar a premissa de que na lei não existem palavras inúteis. Não se pode esquecer seu conteúdo nem encontrar o que nela não há.

Infelizmente o Presidente da República regulamentou o porte de arma de fogo dos CACs no sentido de que esses podem apenas portar suas armas quando “estiverem em deslocamento para treinamento ou participação em competições; para abate autorizado de fauna; ou para exposição do acervo de coleção, por meio da apresentação do Certificado de Registro de colecionador, atirador desportivo ou caçador, do CRAF e da Guia de Tráfego, válidos”.

Portanto não estamos discutindo o conceito de liberdade individual, se é correta ou não a legislação acerca do tema, etc; estamos sim diante da análise do que existe atualmente no tocante à legalidade do porte de arma pelo CAC.

Vislumbra-se então, que o porte de arma de fogo do CAC de maneira irrestrita poderia ter sido regulamentado tanto no decreto 9846 quanto no 9847, pois diferente das demais categorias que teriam acesso ao porte, elencadas no já revogado Decreto 9.785, existe a previsão legal do porte para o atirador esportivo no art. 6º, inciso IX do Estatuto do Desarmamento, dependendo apenas da regulamentação via Decreto, o que aconteceu porém foi ineficiente, pois apenas inseriu no ordenamento jurídico previsão já existente no antigo artigo 135-A da Portaria 51 do COLOG.

Novamente, com apenas uma canetada, o Presidente da República poderia conceder o porte aos Atiradores tendo em vista a previsão legal conforme acima mencionado, não tendo feito até o momento por interesses particulares, na contramão do divulgado durante toda a sua campanha presidencial.

Sem mais delongas, partimos às respostas das questões levantadas no titulo do texto.

O crime de porte de arma de fogo é chamado de crime de perigo abstrato, pois não necessita que o sujeito utilize a arma para causar um dano em uma pessoa especifica ou em várias, pois o bem jurídico protegido é a segurança coletiva e a incolumidade pública, bastando para a caracterização do delito o mero porte de arma, sem autorização ou em desconformidade com determinação legal ou regulamentar.

É lógico que se um CAC estiver portando uma arma sem registro, raspada, de fabricação artesanal ou adquirida por quaisquer meios ilícitos, incorrerá nas penas dos artigos 14 e/ou 16 do Estatuto do Desarmamento.

Agora partimos do pressuposto de que o CAC esteja portando uma arma de fogo devidamente registrada em seu nome, acompanhada de seu CR e de sua Guia de Trânsito, documentos esses dentro da validade, porém fora do trajeto ou fora do horário de funcionamento do clube, então baseado na lei existe o porte ilegal de arma de fogo nessa situação?

A nosso ver inexistira tal conduta.

Mesmo que não haja a previsão expressa do porte de arma aos CACs nos Decretos 9846 e 9847, ambos do ano de 2019, ao observarmos o artigo 8º da Lei 10826/2003, através de uma interpretação extensiva e adequada ao presente momento, verifica-se que o atirador deverá ser responsabilizado na forma do regulamento da lei:

Art. 8o As armas de fogo utilizadas em entidades desportivas legalmente constituídas devem obedecer às condições de uso e de armazenagem estabelecidas pelo órgão competente, respondendo o possuidor ou o autorizado a portar a arma pela sua guarda na forma do regulamento desta Lei.

Ocorre que o Decreto 9846/2019 que regulamenta a Lei 10.826/2003 no que tange aos CACs, é omissa em relação a qual seria a penalidade.

É dizer que o Atirador Desportivo comete infração administrativa quando porta sua arma fora do estabelecido no §3 do art. 5º do Decreto 9.846, ficando exposto as penalidades descritas no art. 113 e seguintes do Decreto Federal 10.030/2019, pois conforme art. 111 do referido Decreto:

Art. 111.  São infrações administrativas às normas de fiscalização:

(…)

X – portar ou ceder arma de fogo constante de acervo de colecionador, atirador desportivo ou caçador para segurança pessoal;

Por haver a previsão de penalidade aos CACs no supracitado Decreto, entende-se incabível a aplicação do art. 14 da Lei 10.826/2003, tendo em vista ser desproporcional ao caso analisado.

Certo é que o Direito Penal somente há de se preocupar com os bens jurídicos mais importantes e necessários à vida em sociedade, interferindo o mínimo possível na vida do cidadão, sendo a última entre todas as medidas protetoras a ser considerada, devendo as perturbações mais leves serem objeto de outros ramos do Direito, considerando o princípio da intervenção mínima, ou ultima ratio, responsável pela indicação dos bens de maior relevo, que merecem especial atenção, bem como das condutas que devem ser descriminalizadas.

Pois é totalmente ilógico dizer que uma pessoa está totalmente apta a portar uma arma de fogo e transportar outras diversas, e pelo mero fato de essa estar em um horário diferente ou endereço diferente de sua guia, ela se tornar uma criminosa e perde todas as suas capacidades técnicas e psicológicas que a autorizavam a portar uma arma de fogo.

Além do quê, as Guias de Tráfego emitidas não fazem menção ao trajeto que deva ser feito, muito menos trata de horários.

Não se tratando o CAC de pessoa voltada às práticas criminosas, vez que o requisito essencial à aquisição do CR é ser primário e de bons antecedentes, há a necessidade de se aplicar o princípio da intervenção mínima nos casos envolvendo o porte de arma por eles, nos termos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que destaco:

EMENTAESTATUTO DO DESARMAMENTOTRANSPORTE DE MUNIÇÃO PARA SER USADA EM ESPINGARDA CALIBRE 12, DEVIDAMENTE LEGALIZADA E REGISTRADA NO SISTEMA DE ARMAS. PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA. 1. Esta Corte consolidou o entendimento de que para a caracterização do delito previsto no artigo 14 da Lei nº 10.826/03 é irrelevante se a munição possui ou não potencialidade lesiva, por se tratar de delito de perigo abstrato, pouco importando se estava acompanhada de arma de fogo para a sua efetiva utilização. 2. O Direito Penal somente deve se preocupar com os bens jurídicos mais importantes e necessários à vida em sociedade, interferindo o menos possível na vida do cidadão. É a última entre todas as medidas protetoras a ser considerada, devendo ser as perturbações mais leves objeto de outros ramos do Direito. 3. Na hipótese dos autos, verifico que a arma para a qual se destinava a munição era devidamente registrada em nome do recorrido no Sistema de Armas não sendo razoável punir o transporte da munição destinada ao seu uso. 4. Recurso especial a que se nega provimento.” (REsp 1228545/RS, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 18/04/2013, DJe 29/04/2013). (Grifei).

Registre-se que o presente artigo não tem o condão de estimular que os CACs portem suas armas em todas as ocasiões (em que pese o redator ser favorável), pois a análise adequada dependerá de cada situação, bem como de cada julgador, pois esses podem analisar os casos concretos através de seu livre convencimento, haja vista a dificuldade ainda vivenciada nos tribunais pátrios em aplicar de forma correta as normas incidentes à prática – possivelmente em razão da forte propaganda e ideologia desarmamentistas. O interesse maior nesse caso é trazer mais conhecimento técnico aos operadores do direito, profissionais de segurança pública ou mesmo civis que se depararem com questões envolvendo os Colecionadores, Atiradores e Caçadores, tendo em vista as normas específicas aplicadas a esses.