A psique como bússola
Em 09 de agosto de 2021 – Por Sylvain Levy – Médico sanitarista e psicanalista
Para entender melhor como opera o governo Bolsonaro, é necessário rebobinar o tempo, voltar alguns meses e lembrar dois aspectos da famosa reunião ministerial de 22 de abril de 2020 que chamaram a atenção, um pela ausência e outro pela presença como proposta de governo.
Em 22 de abril de 2020 (dia em que um Brasil foi redescoberto) o país contava com 45.757 casos de Covid-19 e 2906 mortes. Nessa reunião pouco ou nada se falou da pandemia, como diria Millor Fernandes, “a sua ausência preenche uma lacuna”. Martin Luther King completaria “o que me assusta não é o grito dos maus, é o silencio dos bons”. Num raro momento em que todo o governo está presente e aonde poderia se consolidar uma concepção de unidade e de disciplina de ação, nada sobre os aspectos de saúde e 19 minutos sobre os problemas na economia ou como se aproveitar do momento e fazer as coisas “na moita”.
Não se ouviu nenhuma voz se manifestando sobre o futuro da epidemia, sobre as prospecções de infectados ou sobre a evolução da mortalidade. Nenhuma preocupação ou mesmo profecia. O governo emudeceu. De lá para cá – em apenas um ano e 20 dias – já são mais de 20 milhões de infectados e 560 mil mortos. A não ser como vacinador (sob muita pressão) e como critico da cloroquina e do tratamento precoce (há muito custo), não se viu ações consistentes do governo, como um conjunto organizado de instituições – ministérios e afins – para minorar o desemprego, a miséria e as demais circunstancias advindas da pandemia.
Nessa fatídica reunião, ao lado de ignorar a emergência sanitária e relevando os impropérios de todos e as bobagens de alguns subordinados, a proposta que partiu da boca do próprio Presidente da República, portanto projeto de governo, foi armar o povo. Ele poderia estar se exprimindo metaforicamente: armar com educação, dotar de informação, armar com oportunidades de crescer, mas não, era armar com armas mesmo, a pretexto de defender a liberdade contra um suposto perigo comunista, que nem quando governos mais à esquerda existiram no país, foi minimamente enxergada. É proposta similar a adotada na Venezuela por Hugo Chaves (de quem Bolsonaro já se confessou admirador) de criar milícias para defender o território venezuelano dos Estados Unidos e seus governos fantoches.
Tem-se, então, presentes nessa reunião três características psíquicas:
Negacionismo, belicismo e paranoia.
O negacionismo é um mecanismo de defesa contra uma realidade de tal ordem angustiante que se torna insuportável. Como defesa dessa dor psíquica usa-se a negação da realidade que tanto incomoda. Assim a ameaça de uma epidemia é negada e se transforma em gripezinha.
Para outra ameaça angustiante – a do desconhecimento, a mente se utiliza de outro mecanismo de defesa, a fantasia ou a fabulação. Se não se sabe como lidar com uma doença que progride e pode alcançar à toda população – uma epidemia, portanto, esse desconhecimento real é substituído por um conhecimento fantasiado. A cloroquina resolve! Mesmo que não haja evidências científicas, os relatos empíricos são suficientes para garantir a racionalidade da propositura e a sua certeza. E naturalmente a angústia pelo não saber ficar aliviada.
O presidente Bolsonaro tem razão quando diz não ser um militar. O militar pauta suas ações com base na estratégia. O Presidente não parece adotar esse método. Parece mais instintivo. Na verdade é um belicista. Faz da briga, da controvérsia, da agressão sua seiva de vida. É muito mais que uma estratégia política: é um modo de estar no mundo. Um belicista não pode ser contrariado sem dar o troco. A cada momento isso é comprovado no comportamento de Bolsonaro e sem escolher aliado ou inimigo. A lista é longa e inclui os defenestrados do governo e os que ficaram, além da imprensa, objeto de ódio permanente, capitaneadas pela citação quase diária a Rede Globo e a Folha de São Paulo. As brigas mais atuais são contra os ministros do STF e TSE e a urna eletrônica. As mais frequentes são contra a
democracia e a ciência.
Ao retransmitir mensagens, por exemplo, Bolsonaro ecoa convocações para manifestação e as publica. Quem publica torna público. Divulga. E não se divulga o que não se concorda. Em poucos dias o Presidente passou da divulgação para a convocação, confirmando que precisava ir para a briga contra a democracia, mesmo. E não era apenas a sua voz, mas de estruturas do governo, como o Ministério da Defesa e a SECOM caracterizando que sua personalidade se imiscuía na conduta dos órgãos do governo, tanto na ação desses como na omissão da Procuradoria Geral da República e de seus aliados no Parlamento. A psique do presidente define a condução do governo.
Já a briga contra a ciência se caracteriza pelo menosprezo às orientações sanitárias da sua (sua?) equipe de saúde e o comparecimento ao vivo e a cores (ou on line, segundo o jargão das redes) nas manifestações. Mais que tudo, ao brigar contra a história – negando a existência de 20 anos de ditadura, ao brigar contra o humanismo – ao elogiar torturas e torturadores, ao negar as mudanças climáticas e desacreditar nas ciências, o presidente deixa a nu uma face obscurantista, incompatível com as possibilidades de compreensão do mundo atual e de atuação responsável e consequente.
Jair Bolsonaro é notícia por ser Presidente da República e por criar novidades novas a cada dia, ou mais de uma num mesmo dia. Pode-se pensar diversos entendimento dessa kainotomia – compulsão à inovação, mas em nenhum deles deve estar incluída uma inteligência precária ou deficiente. Burro e ignorante ele não é.
Bolsonaro entrou para Academia de Agulhas Negras por mérito e, acreditemos, por vocação. Na carreira militar poderia exercitar seu animus belicosus, sua intrínseca capacidade de confrontar aos outros. Não contava, porém, com sua incapacidade de suportar as imposições de disciplina e hierarquia. Sempre foi um franco atirador, um lobo solitário individualista que entrava em grupos e não sentia sensação de pertencimento. Tanto assim que casou e formou diversas famílias e entrou e saiu de vários partidos.
Países com sistemas de governo, ideologias, religiões e etnias diversas, como China, Vietnã e Coreia do Sul se saíram bem da pandemia por terem uma tradição coletivista e uma convicção de não brigar com os fatos, aceitá-los para transformá-los. Quem os nega, quem prega o individualismo e as práticas milicianas, quem vê perigo em todos os cantos e acredita que o confronto é a solução só pode governar segundo essas convicções. Pode ser que seja vitorioso em algumas ocasiões, mas em outras, como na pandemia do Coronavirus, não dá para vencer no grito, na individualidade e sem a participação de todos.
Quem governa com ódio não tem condições psíquicas para governar bem.