Por que um letreiro na Vila incomoda, mas o Noroeste não?

Recentemente, saindo da Vila, me surpreendi com um letreiro no estilo “litoral turístico”, desses que a gente vê em João Pessoa, Maceió ou Porto de Galinhas…
Brasília também tem um desses, que fica nos arredores da Torre de Tv, onde se lê “Eu amo Brasília”, com um coração que substitui o verbo.
Independente da minha opinião acerca do letreiro, a motivação desse texto vem de uma notícia publicada no jornal Metrópoles do dia 06/08/2019. 
(https://www.metropoles.com/colunas-blogs/grande-angular/filha-de-lucio-costa-indigna-se-com-letreiro-na-vila-planalto)
Na reportagem, Maria Elisa, filha de Lúcio Costa, manifesta indignação no que tange à relação do letreiro com o plano urbanístico da cidade. Pelo Facebook, a filha de Lúcio Costa desabafa: “Inacreditável! Se meu pai fosse vivo, era capaz de ir a Brasília para tomar uma providência”, disse, em publicação no Facebook nesse domingo (04/08/2019), completando em seguida: “[Ele] diria, de cara: ‘Eles não desconfiam!”.
Não conheci Lúcio Costa e não sei o que ele diria, já que a única imagem que tenho na memória se deve a uma reportagem onde o arquiteto afirmava, indignado, que Brasília não havia sido inspirada num avião, mas numa borboleta. Afirmou nessa mesma ocasião que somente pessoas muito tolas tirariam inspiração de algo criado pelo próprio ser humano e não pelo Criador (Deus), ou pela natureza. Essa única imagem foi suficiente para concordar com a grandeza de seu trabalho e admirá-lo profunda e perenemente.
Portanto, é com muitíssimo respeito, que venho fazer as seguintes considerações:Brasília tem um plano urbanístico original impecável, permeado pelo ideal de igualdade social e organização setorial. Brasília (pelo que sei, pois não sou arquiteta, tampouco tenho arquitetos em minha família) deveria ser uma cidade rodeada de parques (as asas da “borboleta” seriam preenchidas pelas árvores dos parques que a circundariam).
No entanto, o plano original em muito foi alterado, adaptando-se à realidade do crescimento desproporcional da cidade, que teve necessidades não previstas por aqueles que a idealizaram: existem “puxadinhos” em muitas casas e comércios, existem estacionamentos onde deveriam haver áreas de lazer e existem setores como Águas Claras e o Noroeste que não deveriam existir. A própria Orla do Lago do Setor de Clubes foi projetada exclusivamente ao turismo e lazer, não prevendo construções residenciais, mas podemos reparar a existência hodierna de luxuosos apartamentos.

Nesse momento, me pergunto se a cidade pertence a quem a idealizou ou se pertence a quem nela habita, pergunto também qual a razão da manifestação pública em relação à Vila e não aos outros tantos locais alterados…
Mesmo no planejamento de divisão igualitária de cidade, sabemos que os apartamentos das quadras duzentos são maiores e mais arejados do que os das quadras quatrocentos (especialmente na Asa Sul, que foi construída antes da Asa Norte), basta observar os prédios da 411 Sul, em contrapartida aos da 102 Sul, que ficará mais fácil elucidar a discriminação já existente no projeto piloto. Também as casas e terrenos do Lago Sul, se diferem grandemente dos terrenos e casas do Núcleo Bandeirante, Guará ou Taguatinga. 
As casas dos arquitetos, médicos, políticos e juízes foram projetadas para serem mais confortáveis, do que as casas e apartamentos dos operários. Meus avós vieram erguer essa cidade, meu avô paterno (Sr. Manoel Alves da Siva) trabalhou para projetos de Burle Marx e aposentou-se após acidente, trabalhando na construção dessa cidade (e sabe-se que naquela época era comum que o valor estipulado nos contratos trabalhistas fosse abaixo do que os operários recebiam na prática, para que as construtoras se livrassem de muitos encargos tributários, fazendo com que num caso de aposentadoria por invalidez o empregado não recebesse o equivalente ao que merecia). Vovô  largou absolutamente tudo o que tinha no Nordeste e veio com a esposa e nove filhos (teve 14 filhos, mas somente 9 sobreviveram à seca nordestina), acreditando no entusiasmo de Juscelino Kubistchek.
Vejo a indignação de Maria Elisa, que por grande amor a seu pai procura honrar o plano original da cidade, mas peço a ela que olhe gentilmente para aquelas pessoas que não foram consideradas nos planos dele. Minha família está entre estas pessoas, pois a ideia era de que os operários viessem e sumissem daqui assim que a cidade fosse construída, mas ocorreu que muitos deles não conseguiram voltar e por aqui permaneceram.
Nem Deus teve controle de seu plano original, tendo que fazer reajustes e adaptações para salvar sua criação dos intempéries e imprevistos, nos fazendo refletir que podemos projetar e criar algo, mas a criação possui sempre vida própria e livre arbítrio.
Nasci na Vila e só quem é “das antigas” na Vila é que se chama de “vileno”, só quem é “vileno” sabe em qual ponto se pega o 104, que por muito tempo era a única linha de ônibus que tínhamos por aqui. Só quem é “vileno” juntava moedas para pagar o “busão” até o Conjunto Nacional (que era o “rolê” rotineiro mais viável que nosso bolso conseguia cogitar naquela época) para assistir a qualquer filme no extinto Cine Márcia. A gente costumava ir para o orelhão da igrejinha de madeira, para de lá passar trote a cobrar para desconhecidos da lista telefônica, no dia primeiro de abril, pois poucos de nós tinha telefone em casa e os que tinham a mãe não deixava usar à tôa.
 O Armazém do Geraldo era um barracão de madeira e costumávamos dizer apenas “Vou lá no ‘Seu’ Geraldo, mãe!” ou então “Vou lá no ‘Seu’ Vavá”, porque eram nesses lugares que se vendia balinhas, suspiro, maria-mole… 

Já nossas mães, iam ao “Sr. Armando” comprar verduras ou ao “Sr. Bené” comprar carne. Dia de Cosme e Damião as crianças iam para a beira da pista que passa pelo Iate Clube de Brasília, pois sempre vinham carros do Plano Piloto com sacolinhas de doces.
A Vila é o lugar que parece um outro lugar dentro de Brasília, porque tem um pouco do Brasil inteiro (hoje em dia do mundo inteiro, com os hotéis): as ruas são disformes, como de qualquer cidade que cresceu naturalmente no resto do Brasil, não como as ruas sem esquinas milimetricamente projetadas do restante da cidade.
Por muito tempo não tivemos identidade, por muito tempo tivemos medo de perder nossas casas, que não faziam parte dos planos da altíssima especulação imobiliária (que sempre teve vistas para esse miolo, no coração da cidade). A Vila sempre incomodou porque era um amontoado de barracos não previstos, no meio da paisagem projetada para ser “perfeita” de Brasília.
Aos olhos daqueles que planejaram tudo, éramos um incômodo, mas aos nossos olhos, somos a vida oculta que faz essa cidade pulsar: representamos toda a resistência silenciosa e humilde que sobreviveu ao “massacre da Pacheco Fernandes”, representamos os operários que não foram vistos, mas que hoje, permanecem firmes! E não há mais como não nos ver, pois viramos cartão postal: tentaram nos extirpar de várias formas, mas cá estamos fortes, vivos e prósperos!
Se meu querido avô estivesse vivo e visse aquele letreiro, ele diria algo como “Deixa o povo ser feliz” e logo em seguida perguntaria onde teria um “boteco” com comida boa, para assistir aos jogos do Flamengo… 
É que a gente não “desconfia”, desconfiados são vocês: a gente tira o “des” e simplesmente confia! Temos confiança na vida e confiança do nosso lugar. Deixem que os “vilenos” e os órgãos responsáveis decidam se o letreiro cabe, ou não, na paisagem.

Fonte: Vanessa Kenah – Minha Terapia Virtual