O abuso do poder religioso e liberdade religiosa

Em 04 de Agosto de 2020 – Por Diego Avelino Milhomens Nogueira – jus.com.br

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Ministro do TSE propõe, no bojo do Recurso Especial Eleitoral nº 82-85.2016.6.09.0139, que, a partir das eleições de 2020, seja possível incluir a investigação do abuso de poder de autoridade religiosa no âmbito das Ações de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE).

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo visa a analisar a possível tipificação do abuso do poder religioso, pelo Tribunal Superior Eleitoral, para fins de cassação de mandato político.

O Ministro do TSE Edson Fachin propõe, no voto de relator do Recurso Especial Eleitoral nº 82-85.2016.6.09.0139, que, a partir das eleições de 2020, seja possível incluir a investigação do abuso de poder de autoridade religiosa no âmbito das Ações de Investigação Judicial Eleitoral (Aijes).

O Ministro Relator ainda defendeu que “a imposição de limites às atividades eclesiásticas representa uma medida necessária à proteção da liberdade de voto e da própria legitimidade do processo eleitoral, dada a ascendência incorporada pelos expoentes das igrejas em setores específicos da comunidade”.

2. ABUSO DO PODER RELIGIOSO X LIBERDADE RELIGIOSA

Segundo Fávila Ribeiro, o poder é atributo que está inserido na natureza social do homem, e que este tem “congênita propensão ao abuso”. E, o abuso de poder “consiste na incontinência, na liberdade, no exercício de direito ou de competência funcional transviando-se em desmando de uso”.

Para José Jairo Gomes, in verbis

“No Direito Eleitoral, por abuso de poder compreende-se o mau uso de direito, situação ou posição jurídicas com vistas a se exercer indevida e ilegítima influência em dada eleição. Para caracterizá-lo, fundamental é a presença de uma conduta em desconformidade com o Direito (que não se limita à lei), podendo ou não haver desnaturamento dos institutos jurídicos envolvidos. No mais das vezes, há a realização de ações ilícitas ou anormais, denotando mau uso de uma situação ou posição jurídicas ou mau uso de bens e recursos detidos pelo agente ou beneficiário ou a eles disponibilizados, isso sempre com o objetivo de se influir indevidamente em determinado pleito eleitoral.

Ademais, podemos entender que o abuso de poder é a imposição da vontade de um sobre a de outro, com base o exercício do poder, sem observação das legislações vigentes, sendo tema caro e imprescindível à democracia e liberdade de voto.

Para o TSE, a comprovação do abuso de poder exige provas concretas e indiscutíveis sobre os fatos denunciados como abusivos.

A base jurídica do abuso de poder encontra-se no art. 14, § 9º da CF/88, in verbis

Art. 14. (…) § 9º Lei Complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, com a finalidade de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício da função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. (grifamos)

Bem como, no art. 22 da lei das inelegibilidades (LC 64/90), in verbis

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito: (grifamos)

Assim como no art. 72 da Lei Complementar nº 75/93 (lei que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União), in verbis

“Art. 72. Compete ao Ministério Público Federal exercer, no que couber, junto à Justiça Eleitoral, as funções do Ministério Público, atuando em todas as fases e instâncias do processo eleitoral.

Parágrafo único. O Ministério Público Federal tem legitimação para propor, perante o juízo competente, as ações para declarar ou decretar a nulidade de negócios jurídicos ou atos da administração pública, infringentes de vedações legais destinadas a proteger a normalidade e a legitimidade das eleições, contra a influência do poder econômico ou o abuso do poder político ou administrativo”. (grifamos)

Percebe-se que dos referidos normativos legais é clarividente a opção do legislador em tipificar como ato lesivo a normalidade e legitimidade das eleições os atos de abuso do poder político, econômico e de comunicação.

Assim como a atual jurisprudência eleitoral tem reconhecido apenas os atos de abuso de poder econômico, politico e de comunicação para as ações de investigação judicial eleitoral.

Entendimento esse defendido por Jean Regina e Thiago Viera, em recente artigo publicado no site Gazeta do Povo, in verbis

“A lei eleitoral – a Lei nº 9.504/1997, veja-se: lei, aquele diploma que passa por todo um processo perante o Congresso Nacional, e, depois de aprovado por nós, o povo, é sancionado pelo presidente da República, eleito por nós, o povo, reconhece três possibilidades de “abuso de poder” para fins eleitorais. O primeiro é o chamado abuso do poder econômico, quando os recursos próprios ou de terceiros é utilizado para o desequilíbrio do pleito eleitoral. Pode ser verificado pela ação do próprio candidato ou de apoiadores, com entrega de dinheiro diretamente ou mediante prestação de bens ou serviços, como a entrega de cestas básicas. O segundo é o abuso do poder político, o chamado “uso da máquina” em benefício de quem já está investido de autoridade pública, e tem a seu dispor toda a estrutura do Estado na sua esfera de influência para que possa beneficiá-lo na disputa. E o terceiro é conhecido como abuso nos meios de comunicação, também velho conhecido do cenário eleitoral. Quantas disputas foram desequilibradas em nossa história recente através da construção ou desconstrução da imagem pública de candidatos. Mas, e o “abuso do poder religioso”?

Este não consta do Código Eleitoral Brasileiro”.

Outrossim, o próprio TSE, no julgamento do RO nº 265308, ratificou entendimento da inexistência do abuso do poder religioso, pelo fato da ausência de previsão da figura típica na Constituição Federal e legislação eleitoral. Para o Ministro Luiz Fux, de forma resumida, “não existe abuso de poder religioso, seria o abuso de poder político via religião” (TSE, RO 265308, rel. Min. Henrique Neves, j. 7/3/2017, DJe 05/04/2017, p.42). (grifamos)

Ademais, é principiológico que a exegese da interpretação dos textos que são exceções constitucionais e infraconstitucionais seja de forma restritiva, não devendo as cortes jurisdicionais ampliar seus casos.

Segundo José Jairo Gomes, eventual limitação às garantias constitucionais “só é concebível em casos de evidente e reconhecida gravidade, de modo que não se imponha à sociedade mal maior que o bem perseguido”.

Para o Prof. Marcos Ramayana (Ramayana, 2011), in verbis

“Assim é indubitável que as inelegibilidades surgem como exceções constitucionais e infraconstitucionais, dentro do contexto normativo vigente. A exceção merece tratamento exegético restritivo, conforme diversos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais (TSE e STF) sobre o assunto.” (grifamos)

O abuso de poder é ilícito eleitoral, norma de caráter sancionatório com a penalidade mais grave no direito eleitoral, qual seja, a perda do mandato e a inelegibilidade por 08 (oito) anos.

Deste modo, extremamente perigoso para a democracia que as cortes judicias comecem a cunhar mecanismos de exceções para restringir direitos.

A teoria construída pela Relator no referido processo, data venia, passam uma visão de preconceito velado a grupo especifico de cidadão, in casu, grupo religioso cristão.

Todo segmento tem direito de se organizar politicamente e votar em candidatos que lhe faça representar. Esse é espirito do Estado Democrático de Direito.

A Carta Magna aduz que todo o poder emana do Povo, que o exerce por meio de seus representantes (parágrafo único do art. 1º).

A proposta do Relator, no Recurso Especial Eleitoral nº 82-85.2016.6.09.0139, causa uma restrição inconstitucional aos direitos de votar e se votado, simplesmente por defender princípios religiosos e cristãos.

Ademais, percebe-se que todo segmento da sociedade tem liberdade de se posicionar contra ou a favor de qualquer candidato, muitas vezes realizadas manifestações politicas voluptuosas.

Outrossim, o STF, na ADPF 548, julgou válida manifestações políticas em universidades, muitas delas custeada com dinheiro público. E, em muitas manifestações, sem nenhum cunho acadêmico, mas, eminentemente politico.

Então o líder religioso, o cidadão cristão, não pode se manifestar politicamente? E a liberdade religiosa?

A liberdade e diversidade religiosa é direito fundamental insculpido no inciso VI do art. 5º, in verbis

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;  

Assim também como no art. XVIII, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, in verbis

Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular.

A liberdade religiosa como direito fundamental reconhecimento pela República Federativa brasileira, assim como na Carta Universal do direito do homem (humanidade), não é somente ser membro de uma entidade religiosa.

Mas consiste em poder manifestar-se e defender sua crença e os princípios que a regem, assim como exercer sua vocação de formação política.

Para se restringir direito fundamental, só mediante normas expressa da constituição, porque direito fundamental só se restringe quando em colisão com outros direitos fundamentais.

Ademais, a Constituição Federal garante, como direito fundamental, que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa. Deste modo, a natureza religiosa de determinado grupo não pode ser invocada para privar direitos políticos e, consequentemente, para a participação no processo eleitoral.

Segundo Peccinin e Zaclikevis, in verbis

Esses movimentos religiosos possuem uma agenda, uma pauta política e, como tais, seus líderes podem participar do processo político assim como qualquer outro movimento socialQuanto às candidaturas, a partir do arcabouço normativo constitucional e legal brasileiro, não há vedação à criação de partidos políticos declaradamente confessionais ou ideologicamente vinculados a determinada doutrina religiosa, desde que não descumpridos os demais requisitos do art. 17 da Constituição, da mesma forma, não há proibição para candidaturas de clérigos e ministros de culto. Se, após conquistarem o poder, emitirem algum ato que afronte o conteúdo normativo de neutralidade e separação do art. 19 da Constituição, esse ato será inconstitucional. Sua eleição, todavia, será válida, assim como as bandeiras que defendem como uma sociedade plural. (grifamos)

Assim, os movimentos religiosos são grupos de interesse social como quaisquer outros grupos. Assim sendo, têm suas agendas, inclusive políticas, que merecem ser ouvidas e respeitadas. 

Em artigo publicado no site Gazeta do Povo, Jean Regina e Thiago Vieira, corrobora defendendo que:

“… atingir a liderança eclesiástica por exercer sua vocação de formação política do povo sob seus cuidados espirituais é, sim, uma restrição à plena dimensão do art. 5º, VI da constituição. Pois, para além da consciência e crença na dimensão privada, o Brasil celebra a liberdade para se portar na arena pública de acordo com os ditames de sua féE isto também se refere à escolha daqueles que os representam na promoção do bem comum através do Estado. Escolher um candidato político pode muito bem ser, sim, um ato de fé!” grifamos.

Ademais, se a tese do relator prosperar, a justiça, injustamente, tratará uma parcela significativa da população brasileira como cidadão de segunda categoria: sem direitos fundamentais, tais como o direito à manifestação, à participação na politica e no processo eleitoral, bem como o direito de escolher representantes com os quais efetivamente tenha ressonância.

Conforme extraído do noticiado do site do TSE, a tese que mais se enquadra com a normativa constitucional vigente no Brasil hoje é a do Ministro Alexandre de Morais, que, no seu voto, defendeu “que considerando a inviolabilidade de crença, não parecer ser possível, em virtude do principio da legalidade, adotar uma espécie não prevista em lei”. E, que “não se pode transformar religiões em movimentos absolutamente neutros sem participação política e sem legítimos interesses políticos na defesa de seus interesses assim como os demais grupos que atuam nas eleições” (grifamos).

Contínuo, o eminente Ministro prossegue, declarando que se deveria abordar o “abuso do poder sindical, o abuso do poder empresarial e o do poder corporativo”. Asseverando que “qualquer atitude abusiva que acabe comprometendo ou gerando abuso de poder político e econômico deve ser sancionada pela legislação eleitoral, nem mais nem menos” (grifamos).


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3. CONCLUSÃO

Pelo exposto, defendo, no presente artigo, que a corte superior eleitoral brasileira não poderá criar a figura típica do abuso do poder religioso à revelia da legislação e de qualquer indicio constitucional de que a religião mereça tratamento diferenciado dos demais grupos de interesse social.

Caso aconteça, estaria prejudicando, de maneira extremista, candidatos e/ou representantes de importante segmento da sociedade (religioso), considerando membro de referido segmento como cidadão de segunda categoria.

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4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. 12ª.ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011

GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 13. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017

RIBEIRO, Fávila. Abuso de poder no direito eleitoral. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

PECCININ, Luiz Eduardo; ZACLIKEVIS, Wagner Luiz. Ilícitos eleitorais (Palestra proferida por José Eduardo Alckmin, Maria Claudia Bucchianeri Pinheiro, Rodrigo Lopes Zílio e gustavo Bonini guedes). Revista Brasileira de Direito Eleitoral – RBDE, Belo Horizonte, ano 9, n. 17, p. 131-149, jul./dez. 2017.

REGINA, Jean Marques; VIEIRA, Thiago Rafael. O “abuso” do abuso de poder”. Gazeta do Povo, Curitiba, 26 de jun. de 2020. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/cronicas-de-um-estado-laico/abuso-de-poder-de-autoridade-religiosa-nas-eleicoes-abuso-do-stf/>. Acesso em: 30 de jun. de 2020

TSE inicia debate sobre a possibilidade de reconhecer abuso de poder religioso. TSE. Brasília, 25 de jun. 2020. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Junho/tse-inicia-debate-sobre-a-possibilidade-de-reconhecer-abuso-de-poder-religioso>. Acesso em: 30 de jun. de 2020.

Disponível em: <https://tse.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/446377591/recurso-ordinario-ro-265308-porto-velho-ro/inteiro-teor-446377600>. Acesso em: 09 de jul. de 2020.

Plenário anula decisões que proibiram atos com temática eleitoral nas universidades em 2018. STF, Brasília, 15.05.2020. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=443456>. Acesso em: 30 de jun. de 2020.